sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Para sempre Mamãe

Onze anos com mamãe em outra morada de Deus.
Hoje a saudade, o amor, a presença que ficou, como um esboço de luz, uma marca que não se apagou, que estará sempre gravada em nossos corações e nas nossas mentes.
Nada se apaga, nem se esquece, porque faz parte de nós. A sua essencia é indivisível da nossa, somos um só com ela.
Cada gesto, impresso em nossa lembrança, a voz, o riso, os gritinhos, os pulinhos, a brabeza, a retidão, os conselhos, os carinhos, os dedinhos afastando meus cabelos, as mãos, pequenas, em meu rosto..."Deus lhe abençoe, minha filha"
Nunca quis ter outra mãe, ela era inerente a esta função, encaixava com perfeição no seu papel - minha mãe, naturalmente, desde sempre, mãe.
Como é fácil ser filha. Eu nem percebi que ela envelheceu (Só gostava de brincar com as "pelanquinhas" da sua mão, e ficar de dedos entrelaçados aos dela, alisando seu braço....)
Mas ver que ela estava mais frágil? Nunca. Mamãe pareceu sempre ser forte, poder tudo, não precisar de nada - tão maior do que eu, pequena junto dela - filha.
Ela parecia tão imortal, estava desde sempre em minha vida, e pensei que estaria para sempre.
Hoje sei que ela é imortal mesmo - no seu amor, que ainda nos ama, e em tudo o que deixou gravado, para sempre, em nós. Mãe, te amamos tanto! Muito mais do que você também tivesse pressentido.
Fica com Deus.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Partiu meu irmão Renaldo.


Passou 67 anos, 9 meses e 22 dias em nosso mundo, e foi hóspede ameno.
Sorria para todos, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dava prazer.
Seu sorriso foi logo considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o mundo ocidental e oriental. Familiares, amigos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso (encantador), abonam a classificação.

Sua simples presença e seu sorriso compensariam providências e privilégios maiores. Recebia tudo com naturalidade. Acordaria sorrindo, como de costume

Jamais me voltei para Renaldo que ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria desarmada com a sual maneira de olhar-me.

Partiu meu irmão Renaldo. Ficou refletindo na falta que fazem ele e seu sorriso aos que aqui ficam, vividos e puídos.

De repente o mundo ficou vazio.

No ônibus (22/09/2010)

Parafraseando Drumond (No aeroporto)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Tobby e Nina



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Upload feito originalmente por veraccioly

O pequeno

e o grande,
o velho
e o novo,
a prudência
e a curiosidade...

segunda-feira, 9 de agosto de 2010


A saudade tá chegando devagarinho...

No quarto vazio, na hora de acordar e olhar se ele está bem, na hora de chamar para almoçar, na mesa, depois do almoço, ao voltar do trabalho, na hora de dormir e de novo acordar. Faltam as palavras tantas vezes repetidas, o som das respostas, o beijo, o abraço em todas as saídas e chegadas. Tantos gestos, expressões, olhares...Novamente me parto em duas e agradeço por ser essa uma ausência tão feliz!

domingo, 1 de agosto de 2010

Torne-se Oceano (Osho)

Diz-se que, mesmo antes de um rio cair no oceano ele treme de medo. Olha para trás, para toda a jornada, os cumes, as montanhas, o longo caminho sinuoso através das florestas, através dos povoados, e vê à sua frente um oceano tão vasto que entrar nele nada mais é do que desaparecer para sempre. Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar.Voltar é impossível na existência. Você pode apenas ir em frente. O rio precisa se arriscar e entrar no oceano. E somente quando ele entra no oceano é que o medo desaparece. Porque apenas então o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano, mas tornar-se oceano. Por um lado é desaparecimento e por outro lado é renascimento. Assim somos nós. Só podemos ir em frente e arriscar. Coragem !! Avance firme e torne-se Oceano!!! (Osho)

domingo, 13 de junho de 2010

Dia dos desnamorados

Dia dos desnamorados

Por Ivan Ângelo

09/06/2010

A palavra não existe, mas existem as pessoas que se encaixam nela. Desnamorar é fazer os movimentos contrários aos que fazemos para namorar. É um processo, um desenrolar- se, um movimento para acrescentar a cada dia uma pedra na construção de uma barreira — sim, o desnamoro é uma construção.

Se namorar é a desconstrução do outro, no sentido de desmontar defesas pouco a pouco, descobrir e desativar resistências, abalar certezas e hábitos, desconectar antigas cumplicidades, minar a independência, desnamorar é uma construção. De um muro, ou de uma torre.

Muro é boa imagem, porque separa, põe limites, marca território. Torre talvez seja ainda melhor, mais completa, porque isola e coloca no alto, torna mais difícil alcançar quem desnamora.

Para desnamorar, é fundamental a colaboração entre os parceiros, ainda que de um lado a ajuda possa ser involuntária ou passiva. É preciso desleixo, descuido, falta, decepção. Entre os movimentos contrários aos que os parceiros fizeram para namorar, os mais importantes são os contrários à sedução. Nem precisa ter pressa, é ir parando aos poucos de seduzir.

Muitas vezes o casal não sabe que está desnamorando, é mais certo dizer que um deles não sabe, mas pode acontecer de os dois não saberem.

Um namoro é sustentado por pequenas ações charmosas; ao contrário, gestos pequenos de indiferença arquitetam o desnamoro. Beijinhos, presentinhos, bombons de cereja, mensagens no celular, declarações, essas coisas do namoro vão sumindo aos poucos.

Nada daquelas atenções mínimas que pareciam loucuras, como sair do carro no meio do trânsito só para dar mais um beijinho, telefonar de madrugada porque bateu uma saudade, levar um osso no aniversário da cachorrinha, nada disso, e muito menos as grandes maluquices de apaixonado, como jogar pétalas de rosas vermelhas de um helicóptero em cima dela, da casa dela, do quarteirão...

É preciso não ter explicações para certas ausências, ou então explicar pela metade, ou mesmo inventar desculpas esfarrapadas só para levantar suspeitas e piorar o clima.

Não reparar no novo corte de cabelo, nas unhas pintadas, na virilha depilada, nos quilos a menos conseguidos com tanto esforço e renúncia, na redução da barriga de cerveja, no tempo dedicado ao futebol, na palavra amor jogada no meio da conversa banal.

É dizer “não tenho” quando falta um dinheiro. Numa balada ou no barzinho, ficar olhando em volta, em vez de ter os olhos grudados como em outros tempos. É o aflorar da rispidez no lugar da gentileza, o não ouvir ou fazer que não ouviu, o bater de portas, o pisar duro, o conversar de perfil, o jantar só, o silêncio no carro, o não deixar bilhetinho, o não procurar, o dormir antes da chegada do outro.

Não ter tempo para ver aquele filme de que todos estão falando. Isolar-se no almoço de domingo na casa da mãe ou da sogra. Não perguntar “quem está ganhando?” ao passar pela sala na hora do futebol, não que interesse, mas como uma forma de dizer “olá, você”.

Os que têm filhos ou netos vão se acostumando aos poucos com o desnamoro, porque, ah, tanta coisa para fazer, encontram tantas compensações afetivas com os filhos — e contentam-se, deixam-se levar para esse lado, mesmo quando sabem que é amor de outra qualidade.

Uma coisa que não tem importância para os desnamorados é não ganhar presente no Dia dos Namorados.

http://vejasp.abril.com.br/revista/edicao-2168/dia-dos-desnamorados

domingo, 14 de março de 2010

"Discurso sobre a Dignidade do Homem"

"Ó Adão, não te demos nenhum lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós escritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, é que irás determinar para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem moral nem imoral, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até os seres que são as bestas, poderás regenerar-te até as realidade superiores que são divinas, por decisão do teu próprio ânimo."

Pico Della Mirandola "Discurso sobre a Dignidade do Homem" (Oratio de Hominis Dignitate), 1486

A ARTE DE NÃO ADOECER

A ARTE DE NÃO ADOECER
Dráuzio Varella

SE NÃO QUISER ADOECER, FALE DE SEUS SENTIMENTOS


Emoções e sentimentos que são escondidos, reprimidos, acabam em doenças como gastrite, úlcera, dores lombares, dor na coluna. Com o tempo, repressão de sentimentos degenera até o câncer. Vamos desabafar, confidenciar, partilhar intimidades, segredos, pecados. Diálogos, falas, palavras são poderosos remédios, excelente terapia.

SE NÃO QUISER ADOECER, TOME DECISÃO

A pessoa indecisa permanece na dúvida, na ansiedade, na angústia. A indecisão acumula problemas, preocupações, agressões. A história humana é feita de decisões. Para decidir é preciso saber renunciar, saber perder vantagem e valores para ganhar outros. As pessoas indecisas são vítimas de doenças nervosas, gástricas e problemas de pele.

SE NÃO QUISER ADOECER, BUSQUE SOLUÇÕES

Pessoas negativas não enxergam soluções e aumentam os problemas. Preferem a lamentação, a murmuração, o pessimismo. Melhor acender o fósforo que lamentar a escuridão. Pequena é a abelha, mas produz o que de mais doce existe. Somos o que pensamos. O pensamento negativo gera energia negativa, que se transforma em doença.

SE NÃO QUISER ADOECER, NÃO VIVA DE APARÊNCIAS

Quem esconde a realidade, finge, faz pose, quer sempre dar impressão de que está bem, quer mostrar-se perfeito, bonzinho, está acumulando toneladas de peso, uma estátua de bronze com pés de barro. Nada pior para a saúde que viver de aparências e fachadas, ter muito verniz e pouca raiz. Seu destino é a farmácia, o hospital, a dor.

SE NÃO QUISER ADOECER, ACEITE-SE

A rejeição a si próprio, a ausência de auto-estima, faz com que sejamos algozes de nós mesmos. Ser eu mesmo é o núcleo de uma vida saudável. Os que não se aceitam são ciumentos, imitadores, competitivos, destruidores. Aceitar-se, aceitar ser aceito, aceitar as críticas, é sabedoria, bom senso e terapia.

SE NÃO QUISER ADOECER, CONFIE

Quem não confia não se comunica, não se abre, não se relaciona, não cria liames profundos, não sabe fazer amizades verdadeiras. Sem confiança não há relacionamento. A desconfiança é falta de fé em si, nos outros e em Deus.


SE NÃO QUISER ADOECER, NÃO VIVA SEMPRE TRISTE

O bom humor, a risada, o lazer e a alegria recuperam a saúde e trazem vida longa. A pessoa alegre tem o dom de alegrar o ambiente em que vive. O bom humor nos salva das mãos do doutor. Alegria é saúde e terapia.

Dráuzio Varella

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

"Há uma grande diferença entre CONHECER o caminho e PERCORRER o caminho"
Morpheus para Neo, em Matrix

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

W.H. Auden

Funeral Blues

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bane,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crêpe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Paul away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.

April 1936

Por aqueles que eu amo

" A vida tem que ser vivida por alguma coisa, não contra alguma coisa."

Martin Gray / Por aqueles que eu amo

(Citado por Harold S. Kushner / "Quando coisas ruins acontecem às pessoas boas")


"É tão importante envelhecer.

Saber descobrir o encanto de cada idade.

Feliz de quem envelhece por fora, conservando-se jovem por dentro, crescendo em compreensão para com tudo e para com todos, caminhando sempre mais no amor de Deus e no amor ao próximo.

Quem conserva acesa a sua chama, quem mantém entusiasmo pelo que faz, quem sente razão para viver, pode ter o rosto cheio de rugas e cabeça toda branca, mas é jovem.

Quem não entende a vida e não descobre razão para viver, e não vibra, não se empolga, pode ter 20 anos, mas já envelheceu.

O importante não é viver pouco, mas realizar na vida o plano para o qual Deus nos criou. As rosas, a rigor vivem um dia. Mas vivem plenamente porque realizaram o destino de graça e de beleza que vêm trazer à terra...

Se sentirem que os anos passam e a mocidade se vai, peçam a Deus, para si e para os que se tornam menos jovens, a graça de envelhecer como os vinhos envelhecem, tornando-se melhores e, sobretudo, a graça de, envelhecendo, não deixar de amar a vida e vivê-la em plenitude."

Dom Helder Câmara

(citado por Celso Rodrigues em Artigo do Jornal do Comércio de 23/11/2002)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Canto quase réquiem

LUIZ AUGUSTO CRISPIM

Ofereceu-se o parecer na mesma embalagem da advertência:
– É melhor o senhor fechar esses buracos dos beirais porque a sujeira dos passarinhos vai-se acumulando no forro e acaba transmitindo doença de toda espécie...
As entradas foram bloqueadas com argamassa e os passarinhos não puderam mais deitar seus ninhos por cima do nosso despertar em terras do Karawa-Tã.
Até ontem pousavam aos bandos, anunciados pelo alarido irresponsável dos pardais, ponteados pelas notas disciplinadas de alguns raros ferreiros, mas, sobretudo, vivamente coloridos pelo solo caboclo de um talentoso canário da terra, que me parecia ser o Spalla desse grupo sinfônico que costumava freqüentar o telhado da nossa casa neste sopé de Agreste pernambucano.
Pela primeira vez, em muitos anos, fui saudado de manhãzinha por um silêncio de morte. Mas era um silêncio localizado, penosamente insular, expressamente reservado à cumeeira da nossa casa, como a servir de trilha sonora emudecida pelas nossas culpas, em contraste com a sinfonia inacabada dos pássaros.
Da janela, avistei-os todos reunidos em assembléia no alto da baraúna. Receberam-me àquela distância, com um canto ainda mais maestoso, tornando ainda mais sombrios os delitos da casa.
Quase um réquiem.
Por que fora eu confiar naquele palpite infeliz que recomendou a extradição sumária da passarada?
Percebi que a solidão é uma espécie de rendilhado triste, cerzido em pequenos retalhos de silêncio que vão amortalhando a alma da gente nas manhãs despovoadas de passarinhos.
O pior é que não havia mais como convencê-los a retomar os seus lugares lá em cima, para a orquestração de novas manhãs. Na vida é igual. Toca-se a vida de improviso, num concerto único e definitivo, sem direito a ensaio geral. Também não é partitura que aceite certos arranjos. Os acordes sustenidos logo se transformam em fragmentos de cristal que não se sujeitam a emendas ou reparos.
É por isso que a gente deve entender que a morte é uma espécie de apoteose. Gran finale em que não se pode evitar certas notas, nem muito menos desafinar.
Amanhã, ao acordar, tentarei dizer isso aos passarinhos exilados na baraúna do Karawa-Tã. Mandarei desbloquear as entradas da cumeeira e, simplesmente, esperarei que voltem. Mas é preciso que eles façam deste silencio momentâneo um simples contraponto ao gran finale.

Luiz Augusto Crispim, advogado e jornalista, é professor da UFPB e da Unipe







UMA APRENDIZAGEM,OU O LIVRO DOS PRAZERES

A origem da Primavera ou A morte necessária em pleno dia

Clarice Lispector

(...) então do ventre mesmo,

como um estremecer longínquo de terra que mal se soubesse ser sinal do terremoto,

do útero, do coração contraído

veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo

- e em sutis caretas de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um petróleo rasgando a terra

- veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som algum até para ela mesma, aquele que ela não havia adivinhado, aquele que não quisera jamais e não previra

- sacudida como a árvore forte que é mais profundamente abalada que a árvore frágil

- afinal rebentados canos e veias,

então sentou-se para descansar

e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul,

faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações,

faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos,

faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante,

faz de conta que amava e era amada,

faz de conta que não precisava morrer de saudade,

faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir,

faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte,

faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio,

faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos,

faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar,

faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão,

faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta,

faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades,

faz de conta que ela não era lunar,

faz de conta que ela não estava chorando por dentro

– pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado;

ela saíra agora da voracidade de viver.

Agora lúcida e calma, Lóri lembrou-se de que lera que os movimentos histéricos de um animal preso tinham como intenção libertar, por meio de um desses movimentos, a coisa ignorada que o estava prendendo – a ignorância do movimento único, exato e libertador era o que tornava um animal histérico: ele apelava para o descontrole

– durante o sábio descontrole de Lóri ela tivera para si mesma agora as vantagens libertadoras vindas de sua vida mais primitiva e animal: apelara histericamente para tantos sentimentos contraditórios e violentos que o sentimento libertador terminara desprendendo-a da rede, na sua ignorância animal ela não sabia sequer como,estava cansada do esforço de animal libertado.

Mais uma vez, nas suas hesitações confusas, o que a tranqüilizou foi o que tantas vezes lhe servia de sereno apoio: é que tudo o que existia, existia com uma precisão absoluta e no fundo o que ela terminasse por fazer ou não fazer não escaparia dessa precisão; aquilo que fosse do tamanho da cabeça de um alfinete, não transbordava nenhuma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete: tudo o que existia era de uma grande perfeição. Só que a maioria do que existia com tal perfeição era, tecnicamente, invisível: a verdade, clara e exata em si própria, já vinha vaga e quase insensível à mulher.
Bem, suspirou ela, se não vinha clara, pelo menos sabia que havia um sentido secreto das coisas da vida. De tal modo sabia que às vezes, embora confusa, terminava pressentindo a perfeição – de novo esses pensamentos, que de algum modo usava como lembrete (de que, por causa da perfeição que existia, ela terminaria acertando).

domingo, 31 de janeiro de 2010

Futuros amantes
Chico Buarque/1993


Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você

Todo o sentimento


Cristóvão Bastos - Chico Buarque/1987


Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente
Preciso conduzir
Um tempo de te amar
Te amando devagar
E urgentemente
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo o sentimento
E bota no corpo uma outra vez

Prometo te querer
Até o amor cair doente
Doente
Prefiro então partir
A tempo de poder a gente se desvencilhar da gente
Depois de te perder
Te encontro, com certeza
Talvez num tempo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei, como encantado
Ao lado teu
As minhas meninas
Chico Buarque/1986
Para a peça As quatro meninas


Olha as minhas meninas
As minhas meninas
Pra onde é que elas vão
Se já saem sozinhas
As notas da minha canção
Vão as minhas meninas
Levando destinos
Tão iluminados de sim
Passam por mim
E embaraçam as linhas
Da minha mão

As meninas são minhas
Só minhas na minha ilusão
Na canção cristalina
Da mina da imaginação
Pode o tempo
Marcar seus caminhos
Nas faces
Com as linhas
Das noites de não
E a solidão
Maltratar as meninas
As minhas não

As meninas são minhas
Só minhas
As minhas meninas
Do meu coração

Um tempo que passou
Sergio Godinho - Chico Buarque/1983
Gravada no disco Coincidências - Sergio Godinho - EMI



Vou
Uma vez mais
Correr atrás
De todo o meu tempo perdido
Quem sabe, está guardado
Num relógio escondido por quem
Nem avalia o tempo que tem

Ou
Alguém o achou
Examinou
Julgou um tempo sem sentido
Quem sabe, foi usado
E está arrependido o ladrão
Que andou vivendo com o meu quinhão
Ou dorme num arquivo
Um pedaço de vida, vida
A vida que eu não gozei
Eu não respirei
Eu não existia
Mas eu estava vivo
Vivo, vivo
O tempo escorreu
O tempo era meu
E apenas queria
Haver de volta
Cada minuto que passou sem mim

Sim
Encontro enfim
Iguais a mim
Outras pessoas aturdidas
Descubro que são muitas
As horas dessas vidas que estão
Talvez postas em grande leilão

São
Mais de um milhão
Uma legião
Um carrilhão de horas vivas
Quem sabe, dobram juntas
As dores coletivas, quiçá
No canto mais pungente que há

Ou dançam numa torre
As nossas sobrevidas
Vidas, vidas
A se encantar
A se combinar
Em vidas futuras

E vão tomando porres
Porres, porres
Morrem de rir
Mas morrem de rir
Naquelas alturas
Pois sabem que não volta jamais
Um tempo que passou