quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Canto quase réquiem

LUIZ AUGUSTO CRISPIM

Ofereceu-se o parecer na mesma embalagem da advertência:
– É melhor o senhor fechar esses buracos dos beirais porque a sujeira dos passarinhos vai-se acumulando no forro e acaba transmitindo doença de toda espécie...
As entradas foram bloqueadas com argamassa e os passarinhos não puderam mais deitar seus ninhos por cima do nosso despertar em terras do Karawa-Tã.
Até ontem pousavam aos bandos, anunciados pelo alarido irresponsável dos pardais, ponteados pelas notas disciplinadas de alguns raros ferreiros, mas, sobretudo, vivamente coloridos pelo solo caboclo de um talentoso canário da terra, que me parecia ser o Spalla desse grupo sinfônico que costumava freqüentar o telhado da nossa casa neste sopé de Agreste pernambucano.
Pela primeira vez, em muitos anos, fui saudado de manhãzinha por um silêncio de morte. Mas era um silêncio localizado, penosamente insular, expressamente reservado à cumeeira da nossa casa, como a servir de trilha sonora emudecida pelas nossas culpas, em contraste com a sinfonia inacabada dos pássaros.
Da janela, avistei-os todos reunidos em assembléia no alto da baraúna. Receberam-me àquela distância, com um canto ainda mais maestoso, tornando ainda mais sombrios os delitos da casa.
Quase um réquiem.
Por que fora eu confiar naquele palpite infeliz que recomendou a extradição sumária da passarada?
Percebi que a solidão é uma espécie de rendilhado triste, cerzido em pequenos retalhos de silêncio que vão amortalhando a alma da gente nas manhãs despovoadas de passarinhos.
O pior é que não havia mais como convencê-los a retomar os seus lugares lá em cima, para a orquestração de novas manhãs. Na vida é igual. Toca-se a vida de improviso, num concerto único e definitivo, sem direito a ensaio geral. Também não é partitura que aceite certos arranjos. Os acordes sustenidos logo se transformam em fragmentos de cristal que não se sujeitam a emendas ou reparos.
É por isso que a gente deve entender que a morte é uma espécie de apoteose. Gran finale em que não se pode evitar certas notas, nem muito menos desafinar.
Amanhã, ao acordar, tentarei dizer isso aos passarinhos exilados na baraúna do Karawa-Tã. Mandarei desbloquear as entradas da cumeeira e, simplesmente, esperarei que voltem. Mas é preciso que eles façam deste silencio momentâneo um simples contraponto ao gran finale.

Luiz Augusto Crispim, advogado e jornalista, é professor da UFPB e da Unipe







UMA APRENDIZAGEM,OU O LIVRO DOS PRAZERES

A origem da Primavera ou A morte necessária em pleno dia

Clarice Lispector

(...) então do ventre mesmo,

como um estremecer longínquo de terra que mal se soubesse ser sinal do terremoto,

do útero, do coração contraído

veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo

- e em sutis caretas de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um petróleo rasgando a terra

- veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som algum até para ela mesma, aquele que ela não havia adivinhado, aquele que não quisera jamais e não previra

- sacudida como a árvore forte que é mais profundamente abalada que a árvore frágil

- afinal rebentados canos e veias,

então sentou-se para descansar

e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul,

faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações,

faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos,

faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante,

faz de conta que amava e era amada,

faz de conta que não precisava morrer de saudade,

faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir,

faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte,

faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio,

faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos,

faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar,

faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão,

faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta,

faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades,

faz de conta que ela não era lunar,

faz de conta que ela não estava chorando por dentro

– pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado;

ela saíra agora da voracidade de viver.

Agora lúcida e calma, Lóri lembrou-se de que lera que os movimentos histéricos de um animal preso tinham como intenção libertar, por meio de um desses movimentos, a coisa ignorada que o estava prendendo – a ignorância do movimento único, exato e libertador era o que tornava um animal histérico: ele apelava para o descontrole

– durante o sábio descontrole de Lóri ela tivera para si mesma agora as vantagens libertadoras vindas de sua vida mais primitiva e animal: apelara histericamente para tantos sentimentos contraditórios e violentos que o sentimento libertador terminara desprendendo-a da rede, na sua ignorância animal ela não sabia sequer como,estava cansada do esforço de animal libertado.

Mais uma vez, nas suas hesitações confusas, o que a tranqüilizou foi o que tantas vezes lhe servia de sereno apoio: é que tudo o que existia, existia com uma precisão absoluta e no fundo o que ela terminasse por fazer ou não fazer não escaparia dessa precisão; aquilo que fosse do tamanho da cabeça de um alfinete, não transbordava nenhuma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete: tudo o que existia era de uma grande perfeição. Só que a maioria do que existia com tal perfeição era, tecnicamente, invisível: a verdade, clara e exata em si própria, já vinha vaga e quase insensível à mulher.
Bem, suspirou ela, se não vinha clara, pelo menos sabia que havia um sentido secreto das coisas da vida. De tal modo sabia que às vezes, embora confusa, terminava pressentindo a perfeição – de novo esses pensamentos, que de algum modo usava como lembrete (de que, por causa da perfeição que existia, ela terminaria acertando).