Ofereceu-se o parecer na mesma embalagem da advertência:
– É melhor o senhor fechar esses buracos dos beirais porque a sujeira dos passarinhos vai-se acumulando no forro e acaba transmitindo doença de toda espécie...
As entradas foram bloqueadas com argamassa e os passarinhos não puderam mais deitar seus ninhos por cima do nosso despertar em terras do Karawa-Tã.
Até ontem pousavam aos bandos, anunciados pelo alarido irresponsável dos pardais, ponteados pelas notas disciplinadas de alguns raros ferreiros, mas, sobretudo, vivamente coloridos pelo solo caboclo de um talentoso canário da terra, que me parecia ser o Spalla desse grupo sinfônico que costumava freqüentar o telhado da nossa casa neste sopé de Agreste pernambucano.
Pela primeira vez, em muitos anos, fui saudado de manhãzinha por um silêncio de morte. Mas era um silêncio localizado, penosamente insular, expressamente reservado à cumeeira da nossa casa, como a servir de trilha sonora emudecida pelas nossas culpas, em contraste com a sinfonia inacabada dos pássaros.
Da janela, avistei-os todos reunidos em assembléia no alto da baraúna. Receberam-me àquela distância, com um canto ainda mais maestoso, tornando ainda mais sombrios os delitos da casa.
Quase um réquiem.
Por que fora eu confiar naquele palpite infeliz que recomendou a extradição sumária da passarada?
Percebi que a solidão é uma espécie de rendilhado triste, cerzido em pequenos retalhos de silêncio que vão amortalhando a alma da gente nas manhãs despovoadas de passarinhos.
O pior é que não havia mais como convencê-los a retomar os seus lugares lá em cima, para a orquestração de novas manhãs. Na vida é igual. Toca-se a vida de improviso, num concerto único e definitivo, sem direito a ensaio geral. Também não é partitura que aceite certos arranjos. Os acordes sustenidos logo se transformam em fragmentos de cristal que não se sujeitam a emendas ou reparos.
É por isso que a gente deve entender que a morte é uma espécie de apoteose. Gran finale em que não se pode evitar certas notas, nem muito menos desafinar.
Amanhã, ao acordar, tentarei dizer isso aos passarinhos exilados na baraúna do Karawa-Tã. Mandarei desbloquear as entradas da cumeeira e, simplesmente, esperarei que voltem. Mas é preciso que eles façam deste silencio momentâneo um simples contraponto ao gran finale.
Luiz Augusto Crispim, advogado e jornalista, é professor da UFPB e da Unipe
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