domingo, 1 de fevereiro de 2015

Apenas Um Saxofone


Lygia Fagundes Telles.


Anoiteceu e faz frio. "Merde! voilá l’hiver", é o verso que, segundo Xenofonte, cabe dizer agora. Aprendi com ele que palavrão em boca de mulher é como lesma em corola de rosa. Sou mulher. Logo, só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se possível, fazendo parte de um poema. Então as pessoas em redor poderão ver como sou autêntica e ao mesmo tempo erudita. Uma puta erudita, tão erudita que se quisesse podia dizer as piores bandalheiras em grego antigo, o Xenofonte sabe grego antigo. E a lesma ficaria irreconhecível como convém a uma lesma numa corola de quarenta e quatro anos e cinco meses, meu Jesus. Foi rápido não? Rápido. Mais seis anos e terei meio século, tenho pensado muito nisso e sinto o próprio frio secular que vem do assoalho e se infiltra no tapete. Meu tapete é persa, todos meus tapetes são persas, mas não sei o que fazem esses bastardos que não impedem que o frio se instale na sala. Fazia menos frio no nosso quarto, com as paredes forradas de estopa e o tapetinho de juta no chão, ele mesmo forrou as paredes e pregou retratos de antepassados e gravuras da Virgem de Fra Angelico, tinha paixão por Fra Angelico.

Onde agora? Onde? Podia mandar acender a lareira, mas despedi o copeiro, a arrumadeira, o cozinheiro – despedi um por um, me deu um desespero e mandei a corja toda embora, rua, rua! Fiquei só. Há lenha em algum lugar da casa, mas não é só riscar o fósforo e tocar na lenha como se vê no cinema, o japonês ficava horas aí mexendo, soprando até o fogo acender. E eu mal tenho forças de acender o cigarro. Estou aqui sentada faz não sei quanto tempo. Desliguei o telefone, me enrolei na manta, trouxe a garrafa de uísque e estou aqui bebendo bem devagarinho para não ficar de porre, hoje não, hoje quero ficar lúcida, vendo uma coisa, vendo outra. E tem coisa a beça para ver tanto por dentro como por fora, ainda mais por fora, uma porrada de coisas que comprei no mundo inteiro, coisas que nem sabia que tinha e que só vejo agora, justo agora que está escuro. É que fomos escurecendo juntas, a sala e eu. Uma sala de uma burrice atroz, afetada, pretensiosa. E sobretudo rica, exorbitando de riqueza, abri um saco de ouro para o decorador se esbaldar nele. E se esbaldou mesmo, o veado. Chamava-se Renê e chegava logo cedinho com suas telas, veludos, musselinas, brocados, “trouxe hoje para o sofá um pano que veio do Afeganistão, completamente divino! Di-vino!” Nem o pano era do Afeganistão nem ele era tão veado assim, tudo mistificação, cálculo. Surpreendi-o certa vez sozinho, fumando perto da janela, a expressão fatigada e triste de um ator que já está farto de representar. Assustou-se quando me viu, foi como se o tivesse apanhado em flagrante roubando um talher de prata. Então retomou o gênero borbulhante e saiu se rebolando todo para me mostrar o oratório, um oratório falsamente antigo, tudo feito há três dias mas com furinhos na madeira imitando caruncho de três séculos. “Este anjo só pode ser do Aleijadinho, veja as bochechas! E os olhos de cantos caídos, um nadinha estrábicos...” Eu concordava no mesmo tom histérico, embora soubesse perfeitamente que o Aleijadinho teria que ter mais dez braços para conseguir fazer tanto anjo assim, a casa de Madô também tem milhares deles, todos autênticos, “um nadinha estrábicos”, repetiu ela com voz em falsete de Renê. Bossa colonial de grande luxo. E eu sabendo que estava sendo enganada e não me importando, ao contrário, sentindo um agudo prazer em comer gato por lebre. Li ontem que já estão comendo ratos em Saigon e li ainda que já não há mais borboletas por lá, nunca mais haverá a menor borboleta... Desatei antão a chorar feito louca, não sei se por causa das borboletas ou dos ratos. Acho que nunca bebi tanto como ultimamente e quando bebo assim fico sentimental, choro à toa. “Você precisa se cuidar”, Renê disse na noite em que ficamos de fogo, só agora penso nisso que ele me disse. Por que devo me cuidar, por quê? Contratei-o para fazer em seguida a decoração da casa de campo, “tenho os móveis ideais para essa sua casa”, ele avisou e eu comprei os móveis ideais, comprei tudo, compraria até a peruca de Maria Antonieta com todos os seus labirintos feitos pelas traças e mais a poeira pela qual não me cobraria nada, simples contribuição do tempo, é claro. É claro.

Onde agora? Às vezes eu fechava os olhos e os sons eram como voz humana me chamando, me envolvendo, Luisiana, Luisiana! Que sons eram aqueles? Como podiam parecer voz de gente e serem ao mesmo tempo tão mais poderosos, tão mais puros. E despretensiosos como ondas se renovando no mar, aparentemente iguais, só aparentemente.” Este é o meu instrumento”, disse ele deslizando a mão pelo saxofone. Com a outra mão em concha, cobriu meu peito: “E esta é a minha música”.

Onde, onde? Olho meu retrato em cima da lareira. “Na lareira tem que ficar seu retrato”, determinou Renê num tom autoritário, às vezes ele era autoritário. Apresentou-me seu namorado, pintor, pelo menos me fazia crer que era seu namorado porque agora já não sei mais nada. E o efebo de caracóis na testa me pintou toda de branco, uma Dama das Camélias voltando do campo, o vestido comprido, o pescoço comprido, tudo assim esgalgado e iluminado como se eu tivesse o próprio anjo tocheiro da escada aceso dentro de mim. Tudo já escureceu na sala menos o vestido do retrato, lá está ele diáfano como a mortalha de um ectoplasma pairando suavíssimo no ar. Um ectoplasma muito mais jovem do que eu, sem dúvida o puxa-saco do pintor era suficientemente esperto para imaginar como eu devia ser aos vinte anos. “Você no retrato parece um pouco diferente”, concedeu ele, “mas o caso é que não estou pintando só seu rosto”, acrescentou muito sutil. Queria dizer com isso que estava pintando minha alma. Concordei na hora, fiquei até comovida quando me vi de cabeleira elétrica e olhos vidrados. “Meu nome é Luisiana”, me diz agora o ectoplasma. “Há muitos anos mandei embora o meu amado e desde então morri”.

Onde?... Tenho um iate, tenho um casaco de vison prateado, tenho uma coroa de diamantes, tenho um rubi que já esteve incrustado no umbigo de um xá famosíssimo, até há pouco eu sabia o nome desse xá. Tenho um velho que me dá dinheiro, tenho um jovem que me dá gozo e ainda por cima tenho um sábio que me dá aulas sobre doutrinas filosóficas com um interesse tão platônico que logo na segunda aula já se deitou comigo, vinha tão humilde, tão miserável com seu terno de luto empoeirado e suas botinas de viúvo que fechei os olhos e me deitei, vem Xenofonte, vem. “Não sou Xenofonte, não me chame de Xenofonte”, ele me implorou e seu hálito tinha o cheiro recente de pastilhas Valda, era Xenofonte, nunca houve ninguém tão Xenofonte quanto ele. Como nunca houve uma Luisiana tão Luisiana como eu, ninguém sabe desse nome, ninguém, nem o cáften do meu pai que nem esperou eu nascer para ver como eu era, nem a coitadinha da minha mãe que não viveu nem para me registrar. Nasci naquela noite na praia e naquela noite recebi um nome que durou enquanto durou o amor. Outra madrugada, quando enchi a cara e fui falar com meu advogado para não pôr no meu túmulo outro nome senão esse, ele deu risadinha execrável, “Luisiana? Mas por que Luisiana? De onde você tirou esse nome?”.

Controlou-se para não me chacoalhar por tê-lo acordado aquela hora, vestiu-se e muito polidamente me trouxe para casa,”como queira, minha querida, você manda!”

E deu sua risadinha, enfim, uma puta bêbada mas rica tem o direito de botar no túmulo o nome que bem entender, foi o que provavelmente pensou.

Mas já não me importo com o que ele pensa, ele e mais a cambada toda que me cerca, opinião alheia é este tapete, este lustre, aquele retrato. Opinião alheia é esta casa com os santos varados por mil cargas. Mas antes eu me importava e como. Por causa dessa opinião tenho hoje um piano de cauda, tenho um gato siamês com uma argola na orelha, tenho chácara com piscina e papel higiênico com florinhas douradas que o velho trouxe dos Estados Unidos junto com o estojo plástico que toca uma musiquinha enquanto a gente vai desenrolando o papel, “oh! My last rose of summer!...”. Quando me deu os rolos, deu também os potes de caviar, “é preciso dourar a pílula”, disse rindo com sua grossura habitual, é um grosso, senão cuspisse dólar eu já teria mandado ele para aquela parte com seus tacos de golfe e cuecas perfumadas com lavanda. Tenho sapato com fivela de diamante e um aquário com uma floresta de coral no fundo, quando o velho me deu a pérola, achou originalíssimo esconde-la no fundo do aquário e me mandar procurar: “Está ficando quente, mais quente. Não, agora esfriou!...” E eu me fazia menininha e ria quando minha vontade mesmo era dizer-lhe que enfiasse a pérola no rabo e me deixasse em paz, me deixasse em paz! Ele, o jovem ardente com todos seus ardores, Xenofonte com seu hálito de hortelã – enxotar todos como fiz com a criadagem, todos uns sacanas que mijam no meu leite e se torcem de rir quando fico para cair de bêbada.
Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um diamante do tamanho de um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate – trocaria tudo, anéis e dedos, para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem seria preciso vê-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que ele estava vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone.

Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude, tudo o mais é besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer duas mil plásticas e não resolve, no fundo é a mesma bosta, só existe a juventude. Ele era a minha juventude, só que naquele tempo eu não sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode mesmo saber, fica tudo natural como o dia que sucede à noite, com o Sol, a Lua, eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa eu respirava tão bem...

Ele era a minha juventude, ele e seu saxofone que luzia como ouro. Seus sapatos eram sujos, a camisa despencada, a cabeleira um ninho, mas o saxofone estava sempre meticulosamente limpo. Tinha também mania com os dentes, que eram de uma brancura que nunca vi igual, quando ele ria eu parava de rir para ficar olhando. Trazia a escova de dentes no bolso e mais fralda para limpar o saxofone, achou num táxi uma caixa com uma dúzia de fraldas Johnson e desde então passou a usa-las para todos os fins: era lenço, a toalha de rosto, o guardanapo, a toalha de mesa e o pano de limpar o saxofone. Foi também a bandeira de paz que usou na nossa briga mais séria, quando quis que tivéssemos um filho. Tinha paixão por tanta coisa...

A primeira vez que nos amamos foi na praia. O céu palpitava de estrelas e fazia calor. Então fomos rolando e rindo até as primeiras ondas que ferviam na areia e ali ficamos nus e abraçados na água morna como a de uma bacia. Preocupou-se quando lhe disse que não fora sequer batizada. Colheu a água com as mãos e despejou na minha cabeça: “Eu te batizo, Luisiana, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém”. Pensei que ele estivesse brincando mas nunca o vi tão grave.
“Agora você se chama Luisiana”, disse me beijando a face. Perguntei-lhe se acreditava em Deus, “Tenho paixão por Deus”, sussurrou deitando-se de costas, as mãos entrelaçadas debaixo da nuca, o olhar no céu: “O que me deixa perplexo é um céu assim como este”. Quando nos levantamos correu até a duna onde estavam nossas roupas, tirou a fralda que cobria o saxofone e trouxe-a delicadamente nas pontas dos dedos para me enxugar com ela. Aí pegou o saxofone, sentou-se encaracolado e nu como um fauno menino e começou a improvisar bem baixinho, formando com o fervilhar das ondas uma melodia terna e cálida. Os sons cresciam tremidos como bolhas de sabão, olha esta que grande! Olha esta agora mais redonda...ah, estourou... Se você me ama você é capaz de ficar assim nu naquela duna e tocar, tocar o mais alto que puder até que venha a polícia? Eu perguntei. Ele me olhou sem pestanejar e foi correndo em direção à duna e eu corria atrás e gritava e ria, ria porque ele já tinha começado a tocar a plenos pulmões.

Minha companheira do curso de dança casou-se com o baterista de um conjunto que tocava numa boate, houve festa. Foi lá que o conheci. Em meio da maior algazarra do mundo a mãe da noiva se trancou no quarto chorando, “veja em que meio minha filha foi cair! Só vagabundos, só cafajestes!...” Deitei-a na cama e fui buscar um copo de água com açúcar mas na minha ausência os convidados descobriram o quarto e quando voltei os casais já tinham transbordado até ali, atracando-se em almofadas pelo chão. Pulei gente e sentei-me na cama. A mulher chorava, chorava até que aos poucos o choro foi esmorecendo e de repente parou. Eu também tinha parado de falar e ficamos as duas muito quietas, ouvindo a música de um moço que eu ainda não tinha visto. Ele estava sentado na penumbra, tocando saxofone. A melodia era mansa mas ao mesmo tempo tão eloqüente que fiquei imersa num sortilégio. Nunca tinha ouvido nada parecido, nunca ninguém tinha tocado um instrumento assim. Tudo o que tinha querido dizer à mulher e não conseguira, ele dizia agora com o saxofone: que ela não chorasse mais, tudo estava bem, tudo estava certo quando existia o amor. Tinha Deus, ela não acreditava em Deus? – perguntava o saxofone. E tinha a infância, aqueles sons brilhantes falavam agora da infância, olha aí a infância!... A mulher parou de chorar e agora era eu que chorava. Em redor, os casais ouviam num silêncio fervoroso e suas carícias foram ficando mais profundas, mais verdadeiras, porque a melodia também falava do sexo vivo e casto como um fruto que amadurece ao sol.

Onde? Onde?... Levou-me para o seu apartamento, ocupava um minúsculo apartamento no décimo andar de um prédio velhíssimo, toda a sua fortuna era aquele quarto com um banheiro mínimo. E o saxofone. Contou-me que recebera o apartamento como herança de uma tia cartomante. Depois, num outro dia disse que o ganhara numa aposta e quando outro dia ainda começou a contar uma terceira história, interpelei-o e ele começou a rir, “é preciso variar as histórias, Luisiana, o divertido é improvisar que para isso temos imaginação! É triste quando um caso fica a vida inteira igual...” E improvisava o tempo todo e sua música era sempre ágil, rica, tão cheia de invenções que chegava a me afligir, você vai compondo e vai perdendo tudo, você tem que tomar nota, tem que escrever o que compõe! Ele sorria.

“Sou um autodidata, Luisiana, não sei ler nem escrever música e nem é preciso para ser um sax-tenor, sabe o que é um sax-tenor? É o que eu sou.” Tocava num conjunto que tinha contrato com uma boate e sua única ambição era ter um dia um conjunto próprio. E ter também uma vitrola de boa qualidade para ouvir Ravel e Debussy.

Nossa vida foi tão maravilhosamente livre! E tão cheia de amor, como nos amamos e rimos e choramos de amor naquele décimo andar, cercados por gravuras de Fra Angelico e retratos dos seus antepassados. “Não são meus parentes, achei tudo isso no baú de um porão”, confessou-me certa vez. Apontei para o mais antigo dos retratos, tão antigo que da mulher só restava a cabeleira escura. E as sobrancelhas.

Esta você também achou no baú? Perguntei. Ele riu e até hoje fiquei sem saber se era verdade ou não. Se você me ama mesmo, eu disse, suba então naquela mesa e grite com todas as forças, vocês são todos uns cornudos, vocês são todos uns cornudos! E depois desça da mesa e saia mas sem correr. Ele me deu o saxofone para segurar enquanto eu fugia rindo, não, não, eu estava brincando, isso não! Já na esquina ouvi seus gritos em pleno bar, “cornudos, todos cornudos!” Alcançou-me em meio da gente estupefata, “Luisiana, Luisiana, não me negue Luisiana!” Outra noite – saíamos de um teatro – não resisti e perguntei-lhe se era capaz de cantar ali no saguão um trecho de ópera, vamos, se você me ama mesmo cante aqui na escada u trecho do Rigoleto!

Se você me ama mesmo, me leva agora a um restaurante, me compre já aqueles brincos, me compre imediatamente um vestido novo! Ele agora tocava em mais lugares porque eu estava ficando exigente, se você me ama mesmo, mesmo, mesmo...

Saía às sete da noite com o saxofone debaixo do braço e só voltava de manhãzinha.

Então limpava o bocal do instrumento, lustrava o metal com a fralda e ficava dedilhando distraidamente, sem nenhum cansaço, sem nenhum desgaste, “Luisiana, você é a minha música e eu não posso viver sem música”, dizia abocanhando o bocal do saxofone com o mesmo fervor com que abocanhava meu peito. Comecei a ficar irritadiça, inquieta, era como se tivesse medo de assumir a responsabilidade de tamanho amor. Queria vê-lo mais independente, mais ambicioso. Você não tem ambição? Não usa mais artista sem ambição, que futuro você pode ter assim? Era sempre o saxofone quem me respondia e a argumentação era tão definitiva que me envergonhava e me sentia miserável por estar exigindo mais. Contudo, exigia. Pensei em abandoná-lo mas não tive forças, não tive, preferi que nosso amor apodrecesse, que ficasse tão insuportável que quando ele fosse embora saísse cheio de nojo, sem olhar para trás.

Onde agora? Onde? Tenho uma casa de campo, tenho um diamante do tamanho de um ovo de pomba... Eu pintava os olhos diante do espelho, tinha um compromisso, vivia cheia de compromissos, ia a uma boate com um banqueiro. Enrodilhado na cama, ele tocava em surdina. Meus olhos foram ficando cheios de lágrimas. Enxuguei-os na fralda do saxofone e fiquei olhando para minha boca que achei particularmente fina. Se você me ama mesmo, eu disse, se você me ama mesmo então saia e se mate imediatamente..



domingo, 12 de agosto de 2012

Ritual


Pra que sonhar
a vida é tão desconhecida e mágica
Que dorme as vezes do teu lado
Calada

Pra que chorar
A vida é bela e cruel, despida
Tão desprevenida e exata 
Que um dia  acaba 

http://www.vagalume.com.br/cazuza/ritual.html

domingo, 15 de janeiro de 2012

Clarividência - Clarice (trechos)

“... quanto a mim não me perdoo a clarividência.”

“Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço
dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”.

“Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.”

“Dá-me a tua mão desconhecida, que a vida está me doendo, e não sei como falar - a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas.”

"Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso."

“Quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto? E a resposta é: não é só isto, é exatamente isto.”

“Viver me deixa tão impressionado, viver me tira o sono.”

“...uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora
de minha própria vida.”

"Eu sou mansa, mas minha função de viver é feroz."

“Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso...”

“Eu antes era uma mulher que sabia distinguir as coisas quando as via. Mas agora cometi o erro grave de pensar.”

“Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo
de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.”

“Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante.”

"Desconfortável. Não me sinto bem. Não sei o que é que há. Mas alguma coisa está errada e dá mal-estar. Mas, no entanto estou sendo franca e meu jogo é limpo. Abro o jogo. Só não conto os fatos de minha vida: sou secreta por natureza. Há verdades que nem a Deus eu contei. E nem a mim mesma. Sou um segredo fechado a sete chaves. Por favor, me poupem. Estou tão só. Eu e meus rituais. O telefone não toca. Dói. Mas é Deus que me poupa.”

“Hoje é domingo de manhã. Neste domingo de sol e de júpiter estou sozinha em casa. Dobrei-me de repente em dois e para frente como em profunda dor de parto- e vi que a menina em mim morria. Nunca esquecerei esse domingo sangrento. Para cicatrizar levara tempo. E eis-me aqui dura e silenciosa e heroica. Sem menina dentro de mim. Todas as vidas são vidas heroicas.”

“Minha verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia. Agora sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama. Quanto a mim, assumo a minha solidão.”

“Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo. Você há de me perguntar por que tomo conta do mundo. É que nasci incumbida. Penso agora que terei que pedir licença para morrer um pouco. Com licença - sim? Não demoro. Obrigada.”

“O mundo independia de mim - esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro - - - - - - “


“De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é. “

“ Simplesmente eu sou eu. e você é você. É vasto, vai durar. Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.”

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Sobre dar nascimento elevado aos seres


As pessoas estão presas, mas quando nós as vemos presas nós as aprisionamos, damos nascimento a elas como pessoas presas. Mas elas não estão presas! Elas pensam que estão presas e eu também penso que elas estão presas. Por isso, nós não permitimos que elas surjam livres.
Então o primeiro passo é nós recitarmos e vermos aqueles seres livres. Quando desenvolvemos essa visão, nós vemos a devastação do karma, porque nós, de modo geral, olhamos as outras pessoas e as aprisionamos com nossos olhares. Nós não permitimos lugares às pessoas, não damos nascimentos de liberdade para elas. Nós as congelamos.
Quando nós começamos a ver que podemos dar nascimento de liberdade ao outro, nós vemos que nossas relações podem ser completamente diferentes. Vocês vão perceber que isso, por exemplo, produz uma grande diferença na relação com os "ex-alguma-coisa". Nós voltamos a um nível que até a expressão do rosto vai mudar. Nós vemos que: "Com que autoridade eu aprisionei o outro como meu marido ou minha mulher?", "Depois que ele/ela foi embora, eu ainda cobro coisas". Nos vemos completamente aprisionados dentro disso, sofrendo por um tempo tão longo quanto essa posição durar - infelicitando o outro, não permitindo nenhum surgimento favorável ao outro.
Podemos ver isso também com nossos filhos. Eventualmente nós não damos nascimento aos filhos no mundo, nós só damos nascimento aos filhos dentro de nossa casa, grudados em nossa mão. Se o filho tenta qualquer coisa, nós não conseguimos vê-lo livre. Ou seja, nós não damos nascimento: no nosso mundo não há espaço para ele surgir livre.
Nós vemos a devastação do que significa dar nascimento inferior aos outros, e a devastação que isso causa para nós porque tentamos aprisionar o outro à nossa visão e ele anda, e aí temos sofrimentos no meio de tudo isso.
Nós vemos como é maravilhoso agora nós olharmos essas pessoas todas e agora nós vamos dar nascimento elevado para eles. Ou seja, eles podem, eles têm qualidades, todos eles têm a natureza de liberdade, eles podem fazer diferente do que estão fazendo. Nós começamos a pensar também assim. Não só vemos a paisagem, como na nossa mente começamos a raciocionar e podemos até dar sugestões, facilitar coisas, para que aquele ser comece a se manifestar segundo essas qualidades que nós negávamos.
Então, quando nós damos esse nascimento sutil a partir de uma paisagem que inclua o outro de uma forma elevada, tudo se transforma.

Ensinamento proferido por
Lama Padma Samten no último dia do retiro realizado em abril de 2005, no CEBB SP

domingo, 30 de janeiro de 2011

Os Filhos (Do Livro "O Profeta")

Uma mulher que carregava o filho nos braços disse:
"Fala-nos dos filhos."
E ele falou:

Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor,
mas não vossos pensamentos,
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã,
Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles,
mas não procureis fazê-los como vós,
Porque a vida não anda para trás
e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos
são arremessados como flechas vivas.
O arqueiro mira o alvo na senda do infinito
e vos estica com toda a sua força
Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro
seja vossa alegria:
Pois assim como ele ama a flecha que voa,
Ama também o arco que permanece estável.
Gibran Kahlil Gibran