domingo, 15 de janeiro de 2012

Clarividência - Clarice (trechos)

“... quanto a mim não me perdoo a clarividência.”

“Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço
dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”.

“Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.”

“Dá-me a tua mão desconhecida, que a vida está me doendo, e não sei como falar - a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas.”

"Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso."

“Quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto? E a resposta é: não é só isto, é exatamente isto.”

“Viver me deixa tão impressionado, viver me tira o sono.”

“...uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora
de minha própria vida.”

"Eu sou mansa, mas minha função de viver é feroz."

“Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso...”

“Eu antes era uma mulher que sabia distinguir as coisas quando as via. Mas agora cometi o erro grave de pensar.”

“Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo
de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.”

“Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante.”

"Desconfortável. Não me sinto bem. Não sei o que é que há. Mas alguma coisa está errada e dá mal-estar. Mas, no entanto estou sendo franca e meu jogo é limpo. Abro o jogo. Só não conto os fatos de minha vida: sou secreta por natureza. Há verdades que nem a Deus eu contei. E nem a mim mesma. Sou um segredo fechado a sete chaves. Por favor, me poupem. Estou tão só. Eu e meus rituais. O telefone não toca. Dói. Mas é Deus que me poupa.”

“Hoje é domingo de manhã. Neste domingo de sol e de júpiter estou sozinha em casa. Dobrei-me de repente em dois e para frente como em profunda dor de parto- e vi que a menina em mim morria. Nunca esquecerei esse domingo sangrento. Para cicatrizar levara tempo. E eis-me aqui dura e silenciosa e heroica. Sem menina dentro de mim. Todas as vidas são vidas heroicas.”

“Minha verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia. Agora sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama. Quanto a mim, assumo a minha solidão.”

“Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo. Você há de me perguntar por que tomo conta do mundo. É que nasci incumbida. Penso agora que terei que pedir licença para morrer um pouco. Com licença - sim? Não demoro. Obrigada.”

“O mundo independia de mim - esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro - - - - - - “


“De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é. “

“ Simplesmente eu sou eu. e você é você. É vasto, vai durar. Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.”

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